“É MUITO DIFÍCIL VIVER SÓ DE LITERATURA”, ADRIANA LISBOA, PRÉMIO LITERÁRIO JOSÉ SARAMAGO 2003

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Lucas CassulePrimeiramente quero agradecer-lhe por ter aceite o convite para essa entrevista e aproveito o ensejo para elogiar o seu conto, “Oval Com Pontas”, que faz parte do livro “Contos que contam”, um conto que, da forma como foi costurado, se destaca pela beleza e pela estética. O enredo é também bastante filosófico-poético. Eu gostei muito de lê-lo. Acredito que tenha contacto com diversas obras, a nível da lusofonia e, agora que se mudou para os Estados Unidos, também com a literatura anglófona. Qual é a avaliação que a Adriana faz sobre o desenvolvimento da literatura em língua portuguesa, a literatura escrita actualmente em relação aos anos anteriores?

Adriana Lisboa: Olá, Lucas! É um prazer falar com você. Bom, em relação à literatura escrita em língua portuguesa, o que venho acompanhando há quase 25 anos, desde que comecei a publicar os meus livros, tenho visto um movimento muito interessante e muito positivo no sentido de haver uma diversidade temática maior, abertura para temas e estilos muito variados. Por exemplo, observando autores contemporâneos, a gente vê alguns que praticam uma literatura mais voltada ao realismo mágico ou outros que têm uma prosa bastante enxuta, bastante seca. Poetas das mais variadas estirpes, dos países que eu tenho acompanhado na África, Brasil, Timor, Goa, Macau… O modo como essas geografias, esses caldos culturais específicos se apresentam, têm me parecido uma riqueza muito grande. E é muito interessante também como as leituras cruzadas estão acontecendo. Eu vejo, no Brasil, uma presença muito maior de autores africanos, de língua portuguesa, mesmo timorenses, do que via há 30 anos. Acho isso extremamente positivo, do meu ponto de vista.

 

LC: Tem algum contacto com a literatura africana, com os escritores africanos? Se sim, o que essas obras lhe transmitem? Costuma colaborar com esses escritores, tem alguma lembrança que gostaria de partilhar?

AL: Bom, acerca da minha relação com a África de língua portuguesa e com os autores africanos de língua portuguesa, tenho uma leitura de autores que eu prezo demais. Uma dessas autoras é a Ana Paula Tavares, de quem eu gosto muito. Tenho a minha leitura de Luís Carlos Patraquim, Ovídeo Martins, Ondjaki, Guita Júnior, Agualusa, Mia Couto… Eu dei aulas de Língua Portuguesa na Universidade, aqui em Houston onde moro, e esses autores africanos constavam das minhas aulas e eram sempre lidos e recebidos com muito interesse pelos alunos, justamente por essa diversidade.

Se a gente pensar numa autora como Ana Paula Tavares, um livro  como “Amargos Como Os Frutos” e o trabalho com o corpo, com o erotismo e com a sexualidade… Se a gente for para um autor como Luís Carlos Patraquim, a gente já tem uma outra relação com o fazer poético, uma presença muito forte na política, de uma voz engajada numa reflexão sobre política, história e sobre a situação social do poeta. Infelizmente, nunca tive oportunidade de ser publicada na África de língua portuguesa nem de ir aos eventos literários. É uma coisa que eu gostaria muito de fazer. Aguardo, portanto, ansiosa e com grande expectativa e possibilidade de fazer isso algum dia.

 

LC: Eu tenho acompanhado o seu trabalho no Instagram, sei que irá lançar um livro em quatro mão, que traz dois títulos. Pode falar um pouco deste livro e de como um título se separa do outro?

AL: A obra a qual você se refere é um trabalho de parceria, meu com uma compositora brasileira chamada Jucy de Oliveira, uma compositora de música electroacústica, uma mulher que está hoje em dia na casa dos oitenta anos de idade, mas continua super produtiva e cheia de energia para se dedicar a projectos mais variados. Jucy é uma pessoa que tem uma história muito importante na história da música da vanguarda no Brasil. Eu tenho uma admiração muito grande pelo trabalho dela, há varias décadas. Tenho um estudo de música no meu currículo, sou formada em música e trabalho como musicista há alguns anos, antes de começar a publicar literatura e, recentemente, há 3-4 anos, eu escrevi um texto ficcional baseado na obra dela, um texto ficcional, mas tem muito da obra dela, do pensamento dela, citações e entrevistas que ela deu, etc. E a Jucy, com quem estabeleci contacto nesta ocasião, pegou esse meu texto e transformou numa opera, que ela chama de ópera cinemática porque o resultado final desse trabalho vai ser um filme. A ópera foi apresentada no teatro no Brasil, no ano passado, e ela filmou e o resultado vai se transformar num filme. O livro que nós acabamos de publicar saiu no Brasil pela editora Relicário, acho que só deve estar disponível no Brasil ou nas livrarias de outros países que trabalham com livros importados. É um livro que traz o roteiro dela, da ópera, que ela chamou de “Realejo de vida ou morte” e o meu texto se chama “Realejo dos mundos”. Daí o duplo título do livro. São partituras das composições dela, fotos do teatro e uma apresentação muito bonita da jornalista Joselia Aguiar. Foi uma colaboração muito importante para a minha carreira e acredito que para a carreira da Jucy também. Foi muito gratificante para mim trabalhar com alguém cujo trabalho admiro tanto.

 

LC: O que retracta a maior parte das suas obras? Que mudança quer impor ao mundo com as suas obras?

AL: Eu acho que a literatura está aí mais para problematizar o mundo do que oferecer respostas. Eu, pelo menos, procuro evitar um pouco na minha escrita essa tentativa de conduzir o leitor em alguma direcção. Interessa-me mais a tentativa de oferecer ângulos diferentes das situações. Os temas que vêm me acompanhando há muito tempo, são os temas da memória, tanto da memória pessoal, familiar, dos personagens, quanto a memória do país. Já escrevi alguns romances que abordam episódios da história do Brasil, há 40-50 anos e também a questão do deslocamento, do pertencimento. Como sabe, eu moro fora do Brasil e tenho uma identidade não muito definida hoje em dia. Sinto-me brasileira, é a língua que eu falo no meu quotidiano, é a língua que eu escrevo e estou sempre indo ao Brasil, mas é como se eu estivesse assim um pouco entre dois mundos. Então, essa figura, tanto do emigrante, quanto do refugiado, do viajante, essas várias categorias e experiências de deslocamento têm me interessado muito nos últimos 15 anos. Talvez, posso dizer, que esses dois temas são os pontos centrais do que eu escrevo e, claro, o amor que é um dos nossos temas inescapáveis, o amor e a morte. Mas quando eu falo de amor, não estou dizendo apenas o amor romântico, falo também do amor entre amigos, entre a mãe e o seu filho, por exemplo. Eu acho que essas várias formas de manifestação do amor na vida dos personagens ou na minha escrita de poesia têm sido algo que vem me interessando.

 

LC: Fale das suas principais referências na escrita.

AL: Eu acho que a minha primeira referência importante em termos de literatura brasileira foi Machado de Assis, que é o nosso grande clássico e que o li muito nova ainda, na altura dos meus 14 anos de idade. Foi uma leitura que me marcou muito profundamente. Eu devo muito ao Machado de Assis. Guimarães Rosa, eu acho que talvez seja o meu grande escritor brasileiro e a sua obra que se chama “Grande Sertão: Veredas” é, para mim, sem exagero, uma das obras mais importantes já escritas em língua portuguesa. Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector, o poeta Manoel Bandeira, o poeta Carlos Drumond de Andrade… Acho que para ficar com alguns dos nomes brasileiros mais clássicos, poderia citar principalmente esses.

 

LC: Com todo o percurso que já trilhou, sente que é possível viver só de literatura?

AL: Eu acho muito difícil, Lucas! Acho bastante difícil viver só de literatura, de direitos autorais. Eu acho que são muito poucas as pessoas que conseguem isso e aí você tem que ter livros que realmente são bestsellers, que se mantém ali a venda sempre no nível tal que você possa pagar as suas contas. Eu tenho a sorte de ter trabalhos que são muito intimamente relacionados com a literatura, venho trabalhando como tradutora há 20 anos e, hoje em dia, eu tenho tido o grande prazer de traduzir autores e autoras que me fascinam e com os quais aprendo muito. Acho que esse processo da tradução é também um processo de leitura, como se a gente lesse com uma lente de aumento, então você meio que entra na costura, na estrutura do texto, mais do que você entraria se tivesse lido por prazer.

Tive essa grande sorte! Dei aulas em Universidades, ensinando literatura de língua portuguesa. No certo sentido vivo de literatura, mas não exclusivamente dos direitos autorais, que fica muito difícil, principalmente num mercado como o Brasil onde se lê muito pouco e os livros que mais vendem são os bestssellers internacionais.

 

LC: Qual é o significado que tem para si ter-se sagrado vencedora do Prémio José Saramago? Como isso contribuiu para a evolução da sua carreira?

AL: O Prémio José Saramago, que eu ganhei em 2003, com o meu segundo romance, foi extremamente importante para mim, por muitos motivos. Eu acho que, em primeiro lugar, era um respaldo, um voto de confiança para uma escritora como eu que estava começando. Foi, quase, como se fosse um sinal verde, do tipo: “o que você está fazendo está sendo legal, está sendo bacana, está tendo um reconhecimento externo”. Eu acho que isso, para todo o artista, é importante. Não é o fundamental, porque acho que a gente pode continuar a fazer o nosso trabalho sem esse tipo de reconhecimento, mas é sempre muito bacana quando a gente pode ter. Foi também um prémio que me abriu as portas para começar a publicar em outros países; primeiro em Portugal, por causa do próprio prémio, depois no resto da Europa, América Latina, Estados Unidos, etc. Além disso, o prémio me deu a enorme alegria de conhecer pessoalmente José Saramago, pois era um autor que eu lia muito, principalmente a produção dele dos anos oitenta, são livros que realmente me encantavam. Na altura, ali nos meus vinte e poucos anos, eu realmente aguardava ansiosamente por cada novo livro dele que era publicado no Brasil.  Então, ganhar esse prémio que foi criado em homenagem a ele, foi uma coisa muito bacana para mim, teve esse duplo significado de ter podido conhecê-lo e ter podido receber o prémio das mãos dele. Estou falando com você agora e estou olhando aqui para uma foto que tenho no porta-retratos até hoje, minha com o Saramago, que eu acho que era uma figura gigante, não apenas literariamente, mas um homem eticamente muito sério e que faz muita falta.

Adriana Lisboa junto de José Saramago

LC: Para fecharmos essa entrevista, quero agradecer a sua disponibilidade e simpatia, e gostaria que deixasse uma mensagem de incentivo aos jovens que estão a iniciar na carreira de escrita, principalmente aos jovens angolanos.

AL: Obrigada, Lucas, pela entrevista e pelo interesse no meu trabalho! O que eu diria, para os escritores jovens angolanos e a todos os que estão começando, acho que é importante encontrar a sua própria voz. É muito fácil a gente olhar ao redor e ver os nossos heróis literários, aquelas figuras que a gente idolatra e estão saindo por aí fazendo sucesso na mídia, ganhando prémios e tal… E a gente querer imitar um pouco, trazer para o nosso texto aquilo que a gente tá vendo no texto do outro. É claro que a gente não faz o livro sozinho, não é? Os livros que a gente escreve estão recheados de influências, de companhia e de vozes dessas outras pessoas, mas o trabalho mais fundamental para mim é encontrar a nossa própria voz, aquilo que é o mais honesto e sincero para nós, na nossa criação. Esse é o grande desafio e a maior aventura para o artista, é o que faz o nosso trabalho valer a pena e é o que a gente tem para oferecer ao mundo: o nosso olhar e a nossa voz. Fiquem todos com o meu abraço e foi um grande prazer!

 

Adriana Lisboa nasceu no Brasil. Morou na França, em Paris e Avignon, e desde 2007 vive a maior parte do tempo nos Estados Unidos. É autora de seis romances, além de poemascontos e histórias para crianças. Seus livros foram traduzidos ao inglêsfrancêsespanholalemão, árabe, italianosuecoromeno e sérvio, e publicados em catorze países. Integrou várias antologias de contos e poesia no Brasil e no exterior.

Galardoada com o Prémio José Saramago, em Portugal, pelo romance Sinfonia em branco, o Prémio Moinho Santista, no Brasil, pelo conjunto de seus romances, e o Prémio de Autor Revelação da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) por Língua de trapos.

Pela equipa RIEP
Lucas Cassule

 

Revisão textual

Enoque Nsambu

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